Gold


Esta peça nasceu da intenção de confrontar uma obra referencial da história da música ocidental, as “Variações Goldberg” de J. S. Bach, nos registos gravados por Glenn Gould em 1955 e 1982 – só por si um testemunho ímpar sobre o poder de apropriação de uma obra e a sua maturação ao longo de uma prodigiosa vida artística - com a cultura musical popular de Moçambique por via de intérpretes de excelência reunidos na sua única companhia profissional – a Companhia Nacional de Canto e Dança de Moçambique.

Deste programa inicial sobra-nos uma referência no título, GOLD.

Ainda assim revelo esta pré-história conceptual porque toda a criação de GOLD emana deste momento inicial. O fascínio pela audição comparativa das duas gravações trouxe-nos a interrogação do tempo como matéria-prima. Foi a interrogação do tempo na vida destes intérpretes que gerou a estória que fomos desfiando ao longo de um mês e meio na cidade de Maputo. A ideia inicial de criar uma osmose exuberante entre a música de Bach e a tradição musical moçambicana foi-se diluindo à medida que se nos revelavam as cruas identidades com que passámos a conviver. Uma espécie de implosão iniciática.

Seguiu-se o arquitectar do cruzamento veloz e exaltado dos nossos olhares. Um encontro, no âmago da tradição da cultura moçambicana, com a sua causalidade remota. Descobrir nela a raiz das vivências e o seu labor expressivo, expressão constante e múltipla, plural nas vozes, nos ritmos, no som que é a sua história, no som inscrito na sua geografia. Mais do que tudo, ouvimos a alma, com ouvidos que transportam na sua memória um acervo de referências estrangeiras a este mundo, a nossa cultura orgulhosa e erudita, o nosso ocidente particular.

Deixámo-nos achar por um lugar vago, primordial, em que foi germinando no dia-a-dia um percurso colectivo de criação feliz e pouco cerimonioso. Assim foram criadas as peças deste jogo. Fomos desenhando um labirinto com ideias que, nascendo da observação e assimilação desta realidade musical, se despenhavam em novas realidades mestiças e imaginárias. Uma poesia composta por palavras nativas que ambicionam um dialecto universal. Por muito abstracta que fosse a nossa invocação, logo era reflectida num falar autêntico. Amplificado. Justo.

Aos poucos fomos criando dispositivos de composição que se replicavam sempre em novas ideias, em novas formas de olhar, em novas transfigurações. Este vocabulário é um gesto de partilha, ressonância das culturas ocidental e africana no palco do mundo.

Quando falo em nós falo de todos, não é fácil distinguir o protagonismo de cada um, o meu, o do coreógrafo, o dos intérpretes. O que levou a quê? Não é fácil distinguir este momento colectivo de criação da unicidade da vida de cada um.

É a esse brilho individual, habitualmente escondido por camadas de minério vulgar, que damos honras de título.

Das variações Goldberg resiste ainda a referência ao baixo cifrado que as estrutura numa das composições iniciais da peça.

Estamos quites.

João Lucas

Maputo, 29 de Maio de 2011